Soberania Digital e Poder das Big Techs: O Caso Brasileiro e Lições para Moçambique
Por Curtis Chincuinha
Resumo
A presente reflexão explora o embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, personificado pelo ministro Alexandre de Moraes, e as gigantes globais da tecnologia, as chamadas Big Techs. Partindo da teoria de Jack Goldsmith sobre jurisdição e soberania na internet, o estudo investiga como a soberania digital nacional é posta à prova pela actuação transnacional dessas corporações. O caso brasileiro serve como um exemplo prático para debater a tensão entre a legislação local e as políticas corporativas globais, além de oferecer lições cruciais para países africanos, em particular Moçambique, na sua busca por consolidar a autonomia digital. O artigo conclui sublinhando a importância de fortalecer os mecanismos jurídicos e regulatórios para assegurar a efectividade da soberania digital num cenário de globalização tecnológica.
Introdução
A crescente influência das grandes empresas de tecnologia, conhecidas como Big Techs, maioritariamente sediadas no Vale do Silício, tem gerado profundas transformações nas dinâmicas de poder e regulação no ambiente digital global. Estas corporações, munidas de infraestrutura tecnológica avançada e um alcance transnacional, desafiam a capacidade dos países de exercerem controlo jurídico e regulatório sobre as atividades digitais que impactam os seus cidadãos. Neste contexto, o conceito de soberania digital emerge como um pilar fundamental para a afirmação do controlo sobre dados, plataformas e fluxos de informação dentro das fronteiras nacionais.
No Brasil, esta fricção entre a soberania nacional e o poder das Big Techs manifesta-se nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância jurídica do país, através da atuação do ministro Alexandre de Moraes. Moraes, um jurista de renome e figura central na defesa das instituições democráticas brasileiras, tem implementado medidas que visam garantir a conformidade das plataformas digitais com a legislação brasileira, contestando a jurisdição extraterritorial destas corporações e a legislação norte-americana sob a qual muitas delas operam.
Este artigo aborda o problema central da crescente interferência das empresas de tecnologia e da legislação estrangeira no ordenamento jurídico nacional, o que provoca tensões e conflitos em torno da soberania digital. Procura-se analisar os desenvolvimentos recentes desta disputa, especialmente à luz das sanções internacionais impostas ao ministro Moraes e das repercussões diplomáticas daí resultantes.
O objetivo primordial é investigar, sob a ótica teórica do professor Jack Goldsmith — uma referência no debate sobre soberania e jurisdição na internet —, como o Brasil tem procurado afirmar a sua soberania digital perante o poder global das Big Techs. Goldsmith argumenta que “a soberania na internet não é um dado adquirido, mas uma construção contínua que depende da capacidade do Estado para fazer cumprir as suas leis no espaço digital” (Goldsmith, 2010, p. 52). Adicionalmente, este estudo visa extrair ensinamentos relevantes para países africanos, com foco em Moçambique, onde desafios semelhantes na regulação e controlo das plataformas digitais são evidentes.
Este trabalho justifica-se pela importância crescente da soberania digital na governança global da internet, sobretudo em contextos de elevada dependência tecnológica e disparidades no acesso e controlo da informação. O caso brasileiro oferece um terreno fértil para compreender os mecanismos jurídicos e políticos envolvidos na defesa da soberania em ambientes digitais complexos e multilaterais.
O artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, apresenta-se uma revisão da literatura sobre soberania digital e jurisdição na internet, baseada nas contribuições de Goldsmith (2010) e outros autores relevantes. Em seguida, descreve-se a metodologia adotada para a análise do estudo de caso brasileiro. Posteriormente, é realizada uma análise detalhada do conflito envolvendo o STF, o ministro Alexandre de Moraes e as Big Techs, considerando os desenvolvimentos mais recentes. Na sequência, discutem-se as implicações para a soberania digital e os aprendizados para Moçambique. Por fim, são apresentadas as conclusões e recomendações para políticas públicas e futuras pesquisas.
Revisão da Literatura
A soberania digital tem-se consolidado como um tema central no debate contemporâneo sobre a governança da internet, à medida que os países buscam reafirmar o seu controlo sobre os dados, plataformas e fluxos de informação que circulam em seus territórios, face à influência crescente das grandes empresas tecnológicas globais.
Segundo Goldsmith (2010), a soberania na internet não deve ser vista como um conceito estático ou inerente, mas sim como uma construção contínua, que depende da capacidade do país em aplicar a sua legislação e impor sanções no ambiente digital:
“Os Estados devem aplicar ativamente as suas leis no ciberespaço para manter a sua soberania; sem aplicação, a soberania torna-se ilusória.” (Goldsmith, 2010, p. 54).
Esta abordagem realça a dimensão prática da soberania, deslocando o debate para as capacidades institucionais e legais dos países, em vez de uma mera delimitação geográfica ou simbólica.
Além disso, Goldsmith (2019) salienta a tensão entre a soberania nacional e a governança global da internet, que opera numa lógica descentralizada e muitas vezes desvinculada dos interesses dos países:
“A internet desafia as noções tradicionais de soberania porque permite aos atores ultrapassarem fronteiras territoriais e leis nacionais, criando um ambiente regulatório global que frequentemente conflita com os interesses dos Estados.” (Goldsmith, 2019, p. 112).
Essa perspetiva é particularmente pertinente no caso das Big Techs, empresas com estruturas jurídicas e operacionais multinacionais que frequentemente se posicionam acima ou à margem dos ordenamentos jurídicos nacionais, impondo políticas internas que podem colidir com as legislações locais (DeNardis, 2014).
Outro aspeto crucial na literatura refere-se ao conceito de soberania digital como uma extensão da soberania tradicional, aplicada ao domínio virtual e às infraestruturas digitais essenciais. Mueller (2010) argumenta que:
“A soberania digital envolve não apenas jurisdição legal, mas também o controlo sobre infraestruturas críticas e a governança dos fluxos de dados que sustentam a segurança nacional e a estabilidade económica.” (Mueller, 2010, p. 78)
Nesse sentido, países com infraestruturas digitais frágeis ou dependentes das Big Techs enfrentam desafios acrescidos para proteger os seus interesses e garantir o respeito às suas normas e valores sociais.
No contexto latino-americano, estudos recentes indicam um aumento da litigância entre autoridades nacionais e plataformas digitais, reforçando a necessidade de novos mecanismos jurídicos e diplomáticos que conciliem a soberania nacional com a natureza transnacional da internet (González, 2022).
Por fim, a literatura africana sobre soberania digital ainda está em desenvolvimento, mas revela preocupações semelhantes quanto à dependência tecnológica e à necessidade de fortalecimento regulatório.
Conforme apontam Moyo e Sibanda (2021),Para países como Moçambique, a consolidação da soberania digital exige investimentos em capacidade regulatória, infraestruturas tecnológicas e uma legislação que reflita as realidades locais.
Metodologia
Este estudo adopta uma abordagem qualitativa de natureza exploratória, recorrendo à análise documental e à revisão bibliográfica especializada sobre soberania digital, jurisdição da internet e relações entre Estados e plataformas digitais transnacionais.
A escolha pelo método qualitativo justifica-se pela necessidade de compreender os significados, interpretações e implicações políticas e jurídicas associados ao fenómeno em análise, em vez de apenas medir variáveis quantitativas.
A recolha de dados incidiu sobre três fontes principais:
1. Produção académica — artigos científicos, livros e relatórios publicados em bases de dados académicas e institucionais relevantes;
2. Documentos oficiais — decisões judiciais, legislação e comunicados de autoridades brasileiras;
3. Fontes jornalísticas de referência — veículos nacionais e internacionais com cobertura rigorosa do caso, garantindo diversidade e credibilidade informativa.
A análise focou-se no caso brasileiro envolvendo o juiz Alexandre de Moraes, membro do Supremo Tribunal Federal, cujas decisões judiciais sobre moderação de conteúdos e actuação de plataformas digitais constituem um exemplo pertinente de aplicação prática da soberania digital.
O caso é examinado como um estudo de caso único, permitindo a identificação de padrões de conflito entre jurisdições nacionais e empresas de tecnologia sediadas no estrangeiro.
A relevância do caso brasileiro para Moçambique e outros países africanos advém de três fatores:
(i) a semelhança dos desafios jurídicos e políticos impostos pelas plataformas digitais;
(ii) a ausência de precedentes locais consolidados sobre regulação de conteúdos em ambiente digital; e
(iii) a necessidade de avaliar estratégias de afirmação da soberania digital num contexto de forte dependência tecnológica externa.
A triangulação entre literatura académica, documentação oficial e cobertura jornalística assegura a validade interpretativa e reforça a solidez das conclusões apresentadas.
Análise e Discussão dos Resultados
O conflito jurídico entre o Supremo Tribunal Federal do Brasil — por meio de decisões proferidas pelo ministro Alexandre de Moraes — e as grandes plataformas digitais sediadas nos EUA tornou-se um caso exemplar dos desafios à soberania digital.
A suspensão temporária da plataforma X (anteriormente Twitter), ordenada entre agosto e outubro de 2024, ilustra o exercício da autoridade brasileira para exigir o cumprimento de ordens judiciais, incluindo o bloqueio de contas envolvidas em desinformação e a nomeação de um representante legal no país.
Sociedade e empresas — como X/X Corp. e Starlink (SpaceX) — sofreram sanções financeiras e operacionais até acatarem os requisitos determinados por Moraes.
A postura firme do ministro foi interpretada como uma legítima afirmação da soberania nacional sobre actividades digitais em território brasileiro. Moraes declarou: “não permitiremos que grandes empresas tecnológicas operem no Brasil sem respeitar a lei brasileira, independentemente da bravata dos líderes corporativos irresponsáveis.”
Em consequência dessas decisões judiciais, as plataformas enfrentaram repercussões significativas. A X foi suspensa; foram aplicadas multas superiores a R$ 28,6 milhões (perto de 329,758,000 MT) e foi determinada a nomeação de um representante legal no Brasil, para assegurar o cumprimento das ordens judiciais.
O episódio culminou em retaliações por parte dos Estados Unidos. Em julho de 2025, o governo Trump impôs sanções ao ministro Moraes sob a Global Magnitsky Act, alegando violações de direitos humanos, censura e arbitrariedades no processo legal conduzido contra o ex-presidente Jair Bolsonaro.
As sanções incluem o congelamento de possíveis ativos nos EUA e restrições de visto, e foram acompanhadas de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros.
Em resposta, Moraes reafirmou o compromisso com a independência judicial e a integridade do ordenamento jurídico brasileiro, afirmando que o processo criminal continuará conforme previsto, ignorando “ameaças covardes e fúteis” vindas do exterior.
O Presidente Lula também repudiou veementemente as sanções, classificando-as como “interferência inaceitável no sistema judicial brasileiro.”
Do ponto de vista da teoria de Jack Goldsmith, este caso exemplifica uma tensão clássica entre jurisdição estatal e regulação digital global. Goldsmith argumenta que, embora as plataformas pareçam operar num espaço transnacional, os Estados mantêm meios legais e institucionais para impor a sua soberania através da aplicação da lei — e não apenas de normas contratuais ou códigos internos da plataforma.
A actuação de Moraes confirma essa hipótese ao utilizar instrumentos jurídicos para afirmar a lei nacional no domínio digital. Além disso, ao transformar uma disputa regulatória num incidente diplomático e económico — com sanções e tarifas como resposta —, o conflito expõe o limite do soft power jurídico.
O Brasil demonstrou capacidade de aplicação interna, porém sofre pressões externas que buscam neutralizar essa soberania no espaço global.
Este embate oferece lições relevantes para Moçambique e outros países africanos. Conforme alertam estudos regionais, a consolidação da soberania digital exige capacidade regulatória, autonomia infraestrutural e coragem institucional para enfrentar corporações transnacionais.
A trajetória brasileira demonstra que é possível exigir conformidade de plataformas tecnológicas, embora o custo político e diplomático possa ser elevado.
Considerações Finais
A reflexão demonstrou que o caso brasileiro envolvendo o ministro Alexandre de Moraes constitui um exemplo paradigmático de afirmação da soberania digital perante o poder concentrado das grandes empresas tecnológicas sediadas nos Estados Unidos.
As medidas judiciais adotadas — desde bloqueios de plataformas até a imposição de sanções financeiras e exigências de representação legal no país — evidenciam que o Estado (ou país), quando possui um arcabouço jurídico robusto e capacidade institucional para a sua aplicação, pode impor a observância da legislação local mesmo a atores transnacionais de grande porte.
A reação das Big Techs, bem como as sanções impostas pelo governo norte-americano, revelam que a disputa não se restringe ao campo jurídico, mas se estende à arena diplomática e económica.
O caso confirma as previsões teóricas de Goldsmith (1998; 2006) quanto à inevitabilidade do confronto entre jurisdições nacionais e interesses corporativos globais, demonstrando que a internet não é um espaço desterritorializado, mas sim um campo de interação regulado por múltiplas soberanias.
Para Moçambique e outros países africanos, extraem-se três lições principais:
1. Capacidade regulatória — É fundamental desenvolver mecanismos jurídicos e institucionais claros para enquadrar a actuação das plataformas digitais no território nacional;
2. Infraestrutura e autonomia tecnológica — Reduzir a dependência de infraestruturas críticas controladas por actores estrangeiros é uma condição essencial para efetivar a soberania digital;
3. Posicionamento diplomático estratégico — A afirmação da soberania no espaço digital pode gerar tensões com potências tecnológicas, exigindo capacidade de negociação e alianças estratégicas regionais (SADC sobretudo) para mitigar impactos económicos e políticos.
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