Soberania em Risco: Como as Big Techs Reescrevem as Regras do Poder em Moçambique

Por Curtis Chincuinha 


Resumo

Este texto examina a crescente influência das Big Techs, como Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), X (anteriormente Twitter), TikTok e outras plataformas dominantes, no contexto moçambicano. Ao longo da análise, são incorporadas as ideias de Nicolau Maquiavel, especialmente no que diz respeito à adaptação estratégica do Estado, e as reflexões de Evgeny Morozov sobre a atuação das Big Techs como "impérios digitais". O foco é o dilema do Estado moçambicano, que, diante do poder dessas plataformas, se vê na necessidade de resgatar sua soberania e autonomia política, sem perder a capacidade de adaptação que o cenário digital exige. Propõe-se uma reflexão crítica sobre como a dependência tecnológica e a extração de dados reforçam assimetrias globais, tema caro a Morozov, enquanto Maquiavel oferece insights sobre a necessidade de pragmatismo institucional para evitar a erosão do poder estatal. Destaca-se ainda a tensão entre a governança local e a hegemonia das corporações transnacionais, que operam sob lógicas comerciais muitas vezes incompatíveis com os interesses nacionais, conforme apontado por Morozov em sua crítica ao "solucionismo tecnológico".  


Introdução  

Moçambique, ao conquistar sua independência em 1975, estabeleceu-se com a intenção de criar um Estado-nação soberano e democrático, comprometido com os ideais de autodeterminação e justiça social. Porém, desde o fim do período socialista e a transição para o neoliberalismo, o país tem enfrentado novos desafios, sendo um dos mais graves a ameaça à sua soberania digital. A abertura econômica dos anos 1990, alinhada a políticas de ajuste estrutural, inseriu Moçambique em um sistema global marcado pela ascensão de corporações tecnológicas que hoje rivalizam com o poder estatal.  

Em tempos de globalização e da chamada "era digital", as Big Techs, como Meta, X, Google e TikTok, desempenham um papel cada vez mais relevante na formação da opinião pública, movimentação política e, por conseguinte, na dinâmica de poder internacional. Como observa Morozov (2017), essas empresas não apenas fornecem infraestrutura digital, mas também impõem normas e valores que refletem interesses privados, frequentemente alheios às realidades locais. Para Maquiavel, a capacidade de adaptação às circunstâncias era fundamental para a preservação da autoridade do governante, e esse princípio deve ser levado em consideração no contexto actual de Moçambique. Neste cenário, o poder digital dessas empresas afeta diretamente a forma como o Estado se relaciona com sua população e como mantém seu controle sobre os espaços de comunicação.  

A transição para a economia digital expôs fragilidades estruturais do Estado moçambicano, como a falta de legislação robusta para regular plataformas e a dependência de infraestrutura controlada por atores estrangeiros. Maquiavel, em "O Príncipe" (2001), já alertava que um governante que desconhece as mudanças em seu entorno está fadado ao fracasso. Analogamente, a incapacidade de Moçambique em responder à velocidade das transformações digitais pode minar sua capacidade de garantir segurança jurídica e controle sobre o ciberespaço, território crítico para a soberania no século XXI.  


A Influência das Big Techs e os Novos Impérios Digitais 

As Big Techs, como Meta, X, Google e TikTok, passaram a representar mais do que simples empresas de tecnologia. Elas operam como impérios digitais que controlam a infraestrutura de comunicação, definindo o fluxo de informações, a dinâmica de interação entre indivíduos e até mesmo as narrativas políticas globais. Para Evgeny Morozov (2017), essas corporações são agentes de um poder que transcende as fronteiras nacionais, manipulando dados e algoritmos para moldar comportamentos e opiniões. Sua atuação assemelha-se a um colonialismo digital, no qual a extração de dados de países periféricos, como Moçambique, alimenta o poder econômico e político dessas empresas no Norte Global.  

Diferente dos impérios coloniais que impunham seu domínio por meio de exércitos, as Big Techs controlam o espaço digital, influenciam eleições, mobilizam movimentos sociais e, muitas vezes, decidem qual conteúdo é relevante e qual deve ser marginalizado. Isso coloca em xeque a soberania dos Estados, pois esses impérios digitais operam fora da regulamentação nacional, criando um vácuo de autoridade que enfraquece o poder governamental. Morozov (2017) alerta que, sem uma resposta coletiva, os Estados nacionais arriscam-se a tornar-se meros espectadores de um jogo de poder no qual não têm influência. Em Moçambique, por exemplo, a moderação de conteúdo no Facebook é feita por algoritmos treinados em contextos culturais distantes, o que pode levar à censura inadvertida de vozes locais ou à propagação de discursos prejudiciais.  

Maquiavel (2001) enfatizava que a manutenção do poder exigia não apenas força, mas também a habilidade de compreender e manipular as estruturas sociais. No contexto digital, isso se traduz na necessidade de os Estados entenderem os algoritmos que regem as plataformas e desenvolverem mecanismos para contrapor sua influência. A falta de transparência das Big Techs sobre o funcionamento de seus sistemas, como destacado por Morozov (2017), cria uma assimetria informacional que beneficia as corporações em detrimento dos governos.  


O Desafio da Soberania Nacional no Mundo Digital

A soberania digital tornou-se uma questão central para países em todo o mundo, incluindo Moçambique, onde o Estado tem uma autoridade limitada sobre o espaço digital. O governo enfrenta o desafio de manter o controle sobre os fluxos de informações, garantindo que plataformas digitais não sejam usadas para fomentar a instabilidade política, a desinformação ou a radicalização social. Como lembra Maquiavel (2001), um príncipe deve antecipar crises e adaptar suas instituições para sobreviver a ameaças externas. No caso moçambicano, isso implica modernizar marcos legais, como a Lei de Cibersegurança (Lei nº 3/2021), para exigir responsabilidade das plataformas sem replicar modelos autoritários de controle.  

Se antes o poder de um Estado era medido pela sua capacidade de exercer controle sobre seu território, agora ele está intimamente relacionado ao controle sobre a comunicação e a informação. Morozov (2017) argumenta que as Big Techs operam como "Estados dentro de Estados", criando jurisdições paralelas onde suas regras prevalecem. Em Moçambique, a ausência de data centers locais e a dependência de servidores estrangeiros deixam o país vulnerável a interrupções e espionagem, uma falha estratégica que Maquiavel associaria à falta de "virou" (virtude política) por parte dos governantes.  

A União Europeia, com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), e países como a Índia, com leis de soberania de dados, oferecem exemplos de como nações podem reafirmar controle sobre o ambiente digital. Para Moçambique, seguir tais modelos exigiria investimento em infraestrutura tecnológica e cooperação regional, estratégias alinhadas ao conselho de Maquiavel de que "o príncipe deve ter como fundamento as boas leis e as boas armas" (MAQUIAVEL, 2001, p. 47).  


A Manipulação Digital e Seus Impactos nas Democracias  

Em várias partes do mundo, as Big Techs têm se tornado um vector de desinformação e polarização política, amplificando divisões e enfraquecendo instituições democráticas. A manipulação digital é uma ameaça não apenas à democracia, mas também à estabilidade de Estados-nação. Em Moçambique, a utilização de plataformas digitais para disseminar fake news, discursos de ódio e teorias conspiratórias tem sido um problema crescente, especialmente durante períodos eleitorais. Como observa Morozov (2017), a arquitetura dessas plataformas é projetada para maximizar o engajamento, mesmo que à custa da verdade e da coesão social.  

As redes sociais são amplificadores de mensagens que, muitas vezes, não refletem a realidade dos fatos, mas sim a criação de uma "realidade paralela", que pode manipular as massas e distorcer a política nacional. Durante as eleições de 2019 em Moçambique, por exemplo, circularam nas redes sociais narrativas falsas sobre suposta fraude eleitoral, exacerbando tensões entre partidos. Para Maquiavel (2001), a manipulação da percepção pública sempre foi uma ferramenta política, mas a escala algorítmica introduzida pelas Big Techs representa um salto qualitativo, exigindo respostas igualmente inovadoras por parte do Estado.  

A falta de regulamentação específica para plataformas em Moçambique permite que actores externos financiem campanhas de desinformação, como ocorreu nas eleições de 2023, segundo relatos da Sociedade Moçambicana de Direito Digital. Morozov (2017) destaca que, em contextos de fragilidade institucional, as Big Techs podem inadvertidamente tornar-se cúmplices de agendas antidemocráticas, seja por omissão na moderação de conteúdo ou por falhas em transparência algorítmica.  


Conclusão

A adaptação estratégica, um princípio central do pensamento de Maquiavel, se aplica diretamente ao cenário digital actual de Moçambique. O governo do país deve agir com astúcia para regular as Big Techs sem comprometer as liberdades individuais. A chave para manter a soberania digital está em estabelecer um equilíbrio entre a regulamentação do espaço digital e o respeito pelas liberdades de expressão, algo que exige tanto firmeza institucional quanto criatividade política.  

As Big Techs, com seu poder global, representam um desafio à soberania dos Estados, e Moçambique deve se preparar para enfrentar esse novo tipo de poder com políticas que assegurem sua autonomia. Em um mundo onde a informação digital se tornou uma moeda de poder, o Estado não pode se permitir ser subordinado ao controle dessas plataformas. Como Maquiavel (2001) ensinaria, a flexibilidade e a astúcia são fundamentais para lidar com as novas ameaças ao poder estatal. Isso inclui alianças regionais para fortalecer a governança digital, como propõe Morozov (2017), e investimentos em tecnologia local para reduzir a dependência externa.  

Se Moçambique se adaptar com inteligência às novas realidades digitais, poderá garantir sua soberania e estabilidade política no século XXI, evitando que sua autoridade seja corroída pelas forças externas representadas pelas Big Techs. A lição de Maquiavel de que "o príncipe deve ser flexível como a água" ressoa aqui: só navegando com destreza entre a regulação e a inovação o Estado manterá seu poder em um mundo cada vez mais moldado por impérios digitais.  

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Referências

Machiavelli, N. (2001). O príncipe (M. S. Dias, Trad.). Editora Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1532).  

Morozov, E. (2017). Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política (C. A. Leite, Trad.). Ubu Editora.  

Moçambique. (2021). Lei de Cibersegurança, Lei nº 3/2021. Diário da República.  

Sociedade Moçambicana de Direito Digital. (2023). Relatório sobre desinformação em eleições: Caso Moçambique 2023. SMDD.  

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