SADC, Regulação Digital e Ordem Pública: Moçambique no Limite do Laissez-Faire

Por Curtis Chincuinha 


Moçambique enfrenta uma crescente crise social marcada pelo desrespeito à hierarquia do Estado, à ordem legal, à propriedade privada e ao direito de circulação. A Constituição da República de Moçambique protege esses direitos fundamentais, estabelecendo, no seu Artigo 55, a liberdade de circulação e residência e, no Artigo 82, a inviolabilidade da propriedade privada. No entanto, a proliferação de manifestações de desobediência, ocupações ilegais, bloqueios de estradas e ataques ao património alheio demonstra uma deterioração da ordem social e levanta um alerta para os limites da autoridade do Estado.

O cenário de instabilidade encontra nos media sociais uma força amplificadora. Plataformas como Facebook, X (antigo Twitter), TikTok e WhatsApp, bem como websites e fóruns, tornaram-se espaços onde discursos de ódio, incitação à violência e desinformação proliferam sem um controlo eficaz. O conceito de Web 2.0, caracterizado pela interactividade e pela participação activa dos utilizadores, transformou esses meios em arenas de contestação e mobilização. Se, por um lado, esse fenómeno fortalece o debate democrático e a liberdade de expressão, por outro, tem sido utilizado para instigar comportamentos ilegais, como sabotagem, bloqueios forçados de actividades laborais (lockouts), vandalismo e desobediência civil generalizada.

A legislação moçambicana prevê mecanismos para coibir tais práticas. O Código Penal estabelece punições para sabotagem, prevendo sanções para aqueles que intencionalmente prejudicam infra-estruturas ou bens privados e públicos. O lockout, enquanto paralisação imposta pelo empregador como forma de pressão, encontra-se regulado na legislação laboral. No entanto, a orquestração desses actos no ambiente digital cria desafios para a aplicação da lei, pois os media sociais permitem um anonimato relativo e a disseminação em larga escala de informações e chamados à acção que escapam à supervisão estatal.


A Fragilidade Regulatória Face às Empresas Globais


Os desafios da regulação do espaço digital em Moçambique são amplificados pelo facto de as plataformas digitais estarem sediadas nos Estados Unidos, onde são protegidas por um quadro jurídico mais permissivo, nomeadamente pela Secção 230 do Communications Decency Act, que isenta as empresas de responsabilidade pelo conteúdo publicado pelos utilizadores. O poder económico e político dos Estados Unidos dificulta qualquer tentativa de regulação unilateral por parte de países isolados, especialmente nações em desenvolvimento como Moçambique, que têm pouca capacidade de influência sobre decisões tomadas em Silicon Valley.

A experiência internacional mostra que os esforços individuais de países com economias pequenas têm pouca eficácia para obrigar as plataformas digitais a cumprir normas locais. Contudo, a União Europeia demonstrou que é possível impor regras regionais às grandes tecnológicas, forçando-as a criar mecanismos de conformidade para operar dentro do seu espaço regulatório. Esse modelo pode servir de inspiração para Moçambique e seus parceiros regionais.


Uma Resposta Regional: Legislação e Regulação Conjunta


Para que Moçambique consiga enfrentar o problema da desregulação do espaço digital, é necessária uma abordagem regional. Assim, propõe-se a criação de uma Lei Regional sobre Responsabilidade Digital no âmbito da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), estabelecendo normas comuns para os países da região. A implementação dessa lei seria assegurada por:

  • Criação de um Organismo Regional de Regulação Digital (ORRD), com autoridade sobre a fiscalização e aplicação de sanções às plataformas digitais que não cumpram as normas estabelecidas. Este organismo funcionaria de forma independente dos governos nacionais, garantindo transparência e eficácia na regulação.
  • Exigência de Representação Regional das Plataformas Digitais, obrigando empresas como Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), X, TikTok e Google a manter escritórios regionais na SADC, assegurando um canal directo para cumprimento das normas estabelecidas.
  • Unidades Especializadas nos Tribunais e Procuradorias dos países membros, responsáveis pela implementação da legislação e pelo julgamento de casos relacionados com desinformação, discursos de ódio e uso ilegal das redes digitais para fins criminosos.

Este modelo permitiria que a SADC negociasse com as empresas tecnológicas como um bloco regional, tornando mais difícil que estas ignorem as suas exigências. Além disso, a existência de um regulador regional reduziria o risco de interferências políticas locais e asseguraria uma aplicação justa e equilibrada da lei.


Garantindo o Equilíbrio entre Liberdade Digital e Ordem Pública


A questão central que se impõe é como estabelecer um equilíbrio entre a preservação da liberdade digital e a necessidade de manter a ordem pública. O laissez-faire digital, isto é, a ausência de regulação e intervenção estatal sobre os media sociais e websites, pode parecer benéfico a curto prazo, pois assegura um espaço de livre debate e participação política. No entanto, quando utilizado como ferramenta de incitação à desordem e à violação de direitos fundamentais, torna-se um risco para a própria democracia.

A solução para este problema não pode basear-se em censura ou medidas autoritárias que eliminem o espaço de debate online. Em vez disso, a regulação digital regional deve ser moderna, democrática e transparente, garantindo que:

  • As plataformas digitais são responsabilizadas por conteúdos ilegais sem que isso comprometa a liberdade de expressão.
  • A criação de um órgão regulador regional assegura transparência e impede interferências políticas.
  • Há um investimento em literacia digital, capacitando os cidadãos para identificar conteúdos manipuladores e compreender as consequências legais das suas acções online.
  • As empresas tecnológicas são obrigadas a colaborar com a regulação local, garantindo que mecanismos de denúncia e remoção de conteúdos ilegais estejam disponíveis na região.

O futuro da democracia digital moçambicana dependerá da capacidade do país de enfrentar os desafios impostos pela desregulação do espaço online. O digital não pode ser visto como um território sem lei, mas também não pode ser sufocado por medidas restritivas que comprometam a sua função como ferramenta de participação cívica e desenvolvimento do pensamento crítico.

A criação de um marco regulatório regional na SADC pode representar um passo essencial para garantir um espaço digital seguro e democrático para todos os cidadãos da região.

---

Referências

Benkler, Y. (2006). The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. Yale University Press.

Levi, S. (2021). Digitalización Democrática: Soberanía Digital para las Personas. Rayo Verde.

Lessig, L. (2006). Code: Version 2.0. Basic Books.

Constituição da República de Moçambique, 2004.

Código Penal de Moçambique, Lei n.º 35/2014.

Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act), União Europeia, 2022.


Postagens mais visitadas deste blog

Soberania em Risco: Como as Big Techs Reescrevem as Regras do Poder em Moçambique

Do Tradicional ao Digital: O Desafio do Uso dos Media Digitais na Administração Pública Moçambicana