Multidões Inventadas: Como Bots e Phone Farms Podem Inflacionar Audiências em Lives e Criar a Falsa Ideia de Popularidade em Moçambique


 

Por Curtis Chincuinha


A explosão das redes sociais transformou as plataformas digitais em verdadeiras arenas onde se disputa poder, seja ele político, económico ou simbólico. No entanto, esta revolução trouxe consigo uma nova forma de distorção: a criação deliberada de audiências artificiais, que desafia os limites da autenticidade no mundo online. Para compreendermos o impacto desta prática em Moçambique, é fundamental conhecer os mecanismos que a tornam possível.

Entre os principais recursos usados para inflacionar números destacam-se os bots, as phone farms e os clusters de perfis falsos. Bots são programas de computador desenhados para executar tarefas repetitivas, como assistir a transmissões, reagir a publicações ou comentar em intervalos programados. Embora sejam ferramentas neutras na sua essência, quando usados para manipulação tornam-se instrumentos de fraude.

As phone farms (ou quintas de telemóveis) consistem em redes físicas de dezenas ou centenas de aparelhos, todos ligados a um software central que simula actividade humana. Cada telemóvel reproduz uma live, interage, deixa likes e comentários pré-definidos. Este método é particularmente eficaz porque contorna os filtros das plataformas, que foram criados para detectar bots puramente virtuais, aumentando assim a credibilidade do falso envolvimento. Por fim, os clusters de perfis falsos são redes de contas, muitas vezes com fotos e nomes que parecem reais, que reforçam a impressão de que o engajamento é genuíno.

Tecnicamente, estas práticas funcionam de forma integrada e coordenada. Uma transmissão ao vivo pode ser "assistida" em simultâneo por centenas de dispositivos de uma phone farm, enquanto bots geram comentários automáticos em padrões que imitam o comportamento humano. Os perfis falsos entram depois em cena para amplificar o conteúdo, partilhando-o e reagindo de forma coordenada. Isto cria um ciclo de reforço que os algoritmos das redes sociais interpretam como popularidade real, o que, por sua vez, aumenta exponencialmente a visibilidade da transmissão para utilizadores verdadeiros.

No contexto moçambicano, uma análise às transmissões ao vivo de Venâncio Mondlane permite levantar hipóteses plausíveis. Em Outubro de 2024, uma live sua registou 115.000 espectadores em simultâneo, com 283.000 reacções e 150.000 comentários em 24 horas. Poucos dias depois, outro evento atingiu 167.000 visualizações. Considerando que Moçambique tem cerca de 3 milhões de utilizadores de Facebook, estes números representam mais de 5% de toda a base de utilizadores da plataforma no país.

Embora não sejam uma prova definitiva de manipulação, estes valores tornam altamente improvável que tais picos resultem apenas de mobilização orgânica. A hipótese de que centenas de dispositivos automatizados, bots e perfis falsos estiveram a operar em simultâneo poderia explicar a magnitude destes números. O efeito combinado de todas estas ferramentas resulta num aumento artificial das métricas que influencia a percepção pública, criando a ilusão de que a live tem uma enorme popularidade e legitimidade social. Este mecanismo gera um "efeito de multidão digital", onde espectadores reais são levados a acreditar numa adesão massiva, mesmo que grande parte dela seja fabricada.

As implicações disto transcendem a esfera técnica. Criar multidões artificiais molda a percepção social: candidatos parecem mais populares do que realmente são, causas obtêm um apoio fictício e empresas projectam uma imagem de sucesso ilusório. O "efeito de multidão" demonstra que as pessoas tendem a alinhar-se com aquilo que percebem como sendo a opinião da maioria. Assim, lives com números inflacionados podem influenciar decisões muito reais — eleitorais, económicas e culturais — que vão muito além do mundo digital. Este fenómeno representa mais do que uma fraude técnica; é um ataque à credibilidade do debate público online.

Pensadores como Habermas idealizaram a esfera pública como um fórum para a deliberação racional, enquanto Castells mostrou como as redes sociais se tornaram centros de poder. O que se observa em Moçambique é a convergência destas ideias: um espaço que deveria ser democrático está a ser instrumentalizado por métricas artificiais que fabricam consenso e legitimidade.

Se o país continuar a aceitar números sem um olhar crítico, arrisca-se a viver num ecossistema em que as vozes mais ouvidas são as que melhor dominam a arte de manipular estatísticas.

Num ambiente tão assimétrico, onde poucos compreendem a tecnologia por detrás dos números e muitos confiam cegamente neles, distinguir o real do fabricado torna-se um desafio central. Lives que aparentam reunir multidões podem, na verdade, ser espectáculos coordenados por dispositivos, algoritmos e perfis falsos, mas com efeitos muito concretos na realidade social e política.

Reconhecer esta possibilidade é o primeiro passo para recuperar a integridade do espaço digital moçambicano e preservar a autenticidade que a comunicação em rede um dia prometeu.

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