Sobre Cercas, Capitais e Capturas: Uma Análise da Estrutura de Poder em Moçambique a partir de Rousseau, Marx e Acemoglu


Por: Curtis Chincuinha


Resumo

O artigo analisa a estrutura de poder em Moçambique a partir de um enquadramento teórico tripartido, combinando as abordagens de Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx e Daron Acemoglu. A partir da reflexão rousseauniana sobre a origem histórica da desigualdade e a fundação da propriedade privada, passando pela crítica marxista à dinâmica dos meios de produção e culminando na teoria institucionalista de Acemoglu sobre a configuração das instituições políticas e económicas, propõe-se uma leitura integrada da formação social moçambicana. Por meio de uma metodologia teórico-interpretativa, argumenta-se que certos desafios contemporâneos da organização política e económica do país estão enraizados em processos históricos de delimitação de recursos, concentração e fragilidade institucional. A análise, centrada na articulação entre estruturas de propriedade, relações de produção e desenho institucional, sugere que o fortalecimento democrático e o desenvolvimento inclusivo em Moçambique dependem de reformas estruturais que considerem tanto os legados históricos quanto as dinâmicas actuais do poder.


Palavras-chave: poder, instituições, estrutura social e Moçambique.


1. Introdução

A questão da desigualdade social, da apropriação de recursos e da organização institucional do poder continua a constituir um dos temas centrais nas ciências sociais. No contexto moçambicano, marcado por um passado colonial, um presente neoliberal e uma promessa contínua de desenvolvimento inclusivo, os desafios relacionados à estrutura de poder, à concentração da riqueza e à eficácia das instituições assumem um carácter particularmente agudo.


Este artigo propõe uma leitura crítica da realidade moçambicana através da articulação entre três tradições teóricas distintas: Jean-Jacques Rousseau, com a sua análise sobre o surgimento da desigualdade e da propriedade privada como actos fundadores da injustiça social; Karl Marx, com a teoria da exploração dos meios de produção no seio do sistema capitalista; e Daron Acemoglu, com a sua concepção das instituições como factores determinantes do sucesso ou fracasso das nações.


O objectivo é aplicar estas perspectivas ao caso moçambicano para compreender como as lógicas de exclusão social e económica se reproduzem ao longo do tempo, mesmo em contextos de independência formal e democratização institucional. Em vez de se propor uma síntese artificial entre os autores, privilegia-se o cruzamento dos seus eixos teóricos, tendo em vista a construção de uma leitura crítica, historicamente situada e teoricamente robusta.


Ao longo deste trabalho, procurar-se-á respeitar os limites e singularidades de cada autor, reconhecendo, todavia, que há um terreno comum que permite essa articulação: a busca pela compreensão das formas através das quais o poder se organiza, se legitima e se perpetua.


Dessa forma, parte-se de uma abordagem transdisciplinar, com o propósito de enriquecer a análise empírica da realidade moçambicana à luz de construções teóricas que, embora não pensadas para esse contexto, revelam-se produtivas para o mesmo.


2. Rousseau: Estado de Natureza e Génese da Propriedade

Jean-Jacques Rousseau, em sua obra "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens" (1755), propõe uma ruptura com a tradição iluminista que via o progresso como condição necessária para a liberdade e igualdade. Para Rousseau, o estado de natureza representa uma condição pré-social em que os homens viviam em relativa igualdade, guiados pelo amor-próprio (amour de soi) e pela compaixão. A desigualdade não é natural, mas histórica e política.

O autor localiza a origem da desigualdade na introdução da propriedade privada, simbolizada pela célebre passagem: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: ‘Isto é meu’ e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” (Rousseau, 1755). Este momento marca uma transição crítica: do estado de liberdade à institucionalização da dominação.

A noção de contrato social, para Rousseau, surge como tentativa de regular essa nova ordem, mas frequentemente consolida os privilégios daqueles que primeiro se apropriaram dos bens comuns. O pacto social deixa de ser uma expressão de vontade geral para tornar-se instrumento de preservação de uma ordem desigual. Nesse sentido, a desigualdade moderna está enraizada em estruturas institucionais e jurídicas que garantem a permanência da propriedade privada e das hierarquias sociais.

Aplicando estas ideias a Moçambique, podemos ver ecos rousseaunianos no processo de expropriação colonial e na subsequente reconfiguração das relações fundiárias e de produção. A apropriação das terras pelos colonos, legitimada por dispositivos jurídicos externos, constitui um dos actos inaugurais da ordem desigual no território. Mesmo após a independência, a lógica da propriedade estatal, e depois privada, manteve o gesto inaugural de exclusão.

Assim, a perspectiva de Rousseau ajuda a compreender como o acto original da cerca — da delimitação do que é meu — está na base de uma estrutura de poder que persiste ao longo da história moçambicana, reconfigurada mas ainda centrada na apropriação e exclusão.

3. Marx: Propriedade Privada e Exploração Capitalista

Karl Marx, em sua análise crítica do capitalismo, situa a origem das desigualdades sociais na propriedade privada dos meios de produção, que se traduz em relações de dominação e exploração econômica. Para Marx, a propriedade privada não é apenas um direito formal, mas a base material sobre a qual se estabelece a divisão entre classes sociais, especialmente entre a burguesia e o proletariado (Marx, 1867). A acumulação do capital depende da apropriação do excedente produzido pelo trabalho não remunerado dos trabalhadores.

A apropriação privada dos meios de produção cria uma estrutura social na qual o capitalista detém o controle dos recursos produtivos e dos processos de trabalho, enquanto os trabalhadores vendem sua força de trabalho por salários, frequentemente insuficientes para sua reprodução plena. Essa dinâmica gera desigualdades intrínsecas ao sistema capitalista, perpetuando uma concentração crescente de riqueza e poder econômico (Marx, 1867).

No contexto moçambicano, a análise marxista contribui para compreender como as relações de produção herdadas do período colonial foram ressignificadas sob o capitalismo neoliberal pós-independência. O controle das terras, minas, e outros recursos naturais frequentemente permanece nas mãos de corporações privadas ou do Estado, que funciona, em muitos casos, como intermediário de interesses econômicos concentrados. Essa configuração reflete a lógica marxista da exploração e da acumulação capitalista, com repercussões profundas nas condições de vida da maioria da população.

Além disso, a teoria marxista ajuda a explicar as contradições entre o crescimento econômico macroeconômico anunciado e a persistência da pobreza e da exclusão social em Moçambique. O aumento do Produto Interno Bruto não se traduz necessariamente em melhorias distributivas, pois as forças do mercado e do capital tendem a beneficiar principalmente os detentores dos meios de produção.

Assim, o pensamento marxista ilumina a relação entre propriedade privada, exploração do trabalho e concentração de capital, elementos fundamentais para analisar as estruturas de poder e desigualdade em Moçambique, especialmente quando combinados com as dimensões jurídica e institucional propostas por Rousseau e Acemoglu.

4. Acemoglu: Instituições Inclusivas e Extrativas

Daron Acemoglu, em colaboração com James A. Robinson, desenvolve uma teoria institucionalista do desenvolvimento económico e político, cujo eixo central reside na distinção entre instituições inclusivas e extrativas (Acemoglu & Robinson, 2012). Instituições inclusivas são aquelas que promovem a participação ampla da sociedade na actividade económica e política, enquanto instituições extrativas concentram o poder e a riqueza em grupos restritos.

Para Acemoglu, o sucesso ou fracasso de uma nação depende menos da sua localização geográfica ou recursos naturais e mais da natureza das suas instituições políticas e económicas. As instituições extrativas tendem a estagnar o crescimento, favorecer elites e limitar a mobilidade social, ao passo que as instituições inclusivas fomentam inovação, igualdade de oportunidades e prosperidade a longo prazo.

No contexto de Moçambique, a análise acemogliana permite problematizar a forma como as instituições pós-independência foram sendo capturadas por elites políticas e económicas, estabelecendo uma continuidade funcional com estruturas coloniais de exclusão. A distribuição de concessões mineiras, o acesso diferenciado a financiamento e as políticas públicas que favorecem grupos específicos são indicativos de um quadro institucional extrativo.

Além disso, a dependência da ajuda externa e a fragilidade da sociedade civil moçambicana agravam a tendência de concentração do poder em círculos fechados. Acemoglu alerta que a mudança institucional só ocorre quando há equilíbrio de poder entre grupos sociais organizados e a elite dirigente, o que no caso moçambicano ainda enfrenta barreiras estruturais significativas.

Dessa forma, a teoria institucionalista ajuda a compreender porque reformas formais não resultam necessariamente em democratização real: porque as instituições informais e os interesses estabelecidos tendem a neutralizar os efeitos das mudanças normativas. Em Moçambique, essa tensão revela-se crucial para entender os limites do desenvolvimento inclusivo.


5. Entre Cercas, Capitais e Capturas: Uma Leitura Crítica da Estrutura de Poder em Moçambique

A análise combinada das obras de Rousseau, Marx e Acemoglu revela que, apesar de suas diferenças metodológicas e históricas, todos convergem na identificação de mecanismos estruturais de exclusão e dominação que moldam as sociedades. No contexto moçambicano, esta convergência teórica permite uma leitura multidimensional da desigualdade, compreendida não apenas como uma questão económica, mas como resultado de dinâmicas históricas, institucionais e políticas que se interpenetram. O “cercar” fundacional descrito por Rousseau, a “acumulação primitiva” analisada por Marx e a “captura institucional” teorizada por Acemoglu constituem momentos distintos, mas interligados, da arquitetura do poder.

Partindo de Rousseau, observa-se que a introdução de formas exclusivas de apropriação — da terra, do poder e dos símbolos — é o ponto de partida para a constituição de hierarquias permanentes em Moçambique. O colonialismo português institucionalizou a desigualdade com base na separação jurídica e espacial entre colonos e indígenas, impondo um modelo de propriedade e autoridade que excluía a maioria da população. Após a independência, embora se tenha assistido a mudanças formais, persistem continuidades estruturais que se alinham ao gesto fundacional de desigualação denunciado por Rousseau.

Com Marx, é possível compreender como essa exclusão fundacional foi transformada em relação de exploração económica. O neoliberalismo introduzido a partir da década de 1990 reconfigura as relações de produção no país, privatizando sectores estratégicos e abrindo o mercado a investidores estrangeiros sem o devido fortalecimento das capacidades internas. A privatização das empresas estatais e a concessão de recursos naturais a grandes empresas transnacionais perpetuaram a lógica da acumulação de capital sem distribuição, deslocando o centro de decisão económica para fora da esfera pública e comunitária.

A perspectiva de Acemoglu permite completar este quadro ao mostrar que estas dinâmicas não se devem apenas a erros de política económica ou a más intenções, mas à forma como as instituições são concebidas, operam e são capturadas. Em Moçambique, o Estado continua a desempenhar um papel central na distribuição de oportunidades e na regulação do acesso ao poder e aos recursos. No entanto, quando as instituições são desenhadas ou manipuladas para favorecer elites específicas — políticas, económicas ou ambas —, a exclusão perpetua-se sob novas formas. Esta captura institucional limita o alcance da democracia, mina a confiança pública e fragiliza os mecanismos de accountability.

Assim, a leitura conjunta dos três autores permite compreender que a exclusão em Moçambique não é fruto de um evento único, mas de um processo histórico que combina exclusão fundacional (Rousseau), exploração material (Marx) e bloqueio institucional (Acemoglu). Cada autor ajuda a iluminar um momento deste processo, e a análise integrada revela uma estrutura de poder complexa, que opera simultaneamente no nível simbólico, económico e político.

Portanto, a luta contra a pobreza e pela justiça social em Moçambique não pode ser reduzida a medidas de política pública isoladas ou a reformas institucionais pontuais. Requer uma compreensão profunda das raízes históricas da exclusão, da lógica do capital e da natureza das instituições. Só a partir dessa leitura crítica e interligada será possível conceber alternativas verdadeiramente transformadoras e inclusivas.

6. Conclusão

A presente análise procurou articular três abordagens teóricas — Rousseau, Marx e Acemoglu — como lentes para compreender a estrutura de poder e exclusão em Moçambique. Longe de serem teorias contraditórias, os seus contributos mostram-se complementares, uma vez que cada uma delas incide sobre dimensões diferentes, mas mutuamente condicionantes, do fenómeno da dominação social: o gesto inaugural da apropriação, a exploração do trabalho e a captura das instituições. Ao serem aplicadas ao contexto moçambicano, estas ideias ajudam a construir um quadro analítico robusto para pensar criticamente os impasses do desenvolvimento no país.

Através de Rousseau, refletimos sobre como a desigualdade não é natural, mas sim social e histórica, com origem na instituição da propriedade privada. No caso moçambicano, o colonialismo operou como esse momento de "cercamento", excluindo populações inteiras do acesso à terra e à cidadania plena. Mesmo após a independência, o modelo de apropriação, ainda que com novos agentes, manteve a lógica excludente, o que revela a actualidade da crítica rousseauniana no entendimento da gênese do poder desigual.

Com Marx, foi possível evidenciar que as transformações no modo de produção moçambicano não eliminaram as estruturas de exploração, mas sim as deslocaram e, em certos casos, intensificaram. O advento do capitalismo neoliberal em Moçambique aprofundou a separação entre quem detém os meios de produção — agora muitas vezes transnacionais — e quem apenas possui sua força de trabalho. A acumulação do capital, favorecida por reformas estruturais e políticas de ajuste, gerou crescimento económico sem inclusão social, num cenário que espelha as críticas marxistas ao capital.

Por fim, Acemoglu ofereceu um quadro explicativo centrado nas instituições políticas e económicas. O argumento de que instituições extrativas bloqueiam o desenvolvimento e consolidam desigualdades permitiu refletir sobre a forma como estruturas estatais e políticas públicas podem ser capturadas por elites organizadas. A realidade institucional moçambicana, marcada por assimetrias de poder e pela baixa capacidade de fiscalização social, mostra a importância de reforçar mecanismos de transparência e inclusão política, sem os quais não é possível alterar a lógica da reprodução da exclusão.

Dessa forma, o estudo evidencia que a transformação da estrutura de poder em Moçambique exige mais do que crescimento económico ou alternância política. É necessário romper com a lógica da apropriação unilateral (Rousseau), da exploração sistémica (Marx) e da captura institucional (Acemoglu). Tal ruptura não se dará espontaneamente, mas dependerá de processos conscientes de mobilização social, renovação das elites e reforma institucional com base na equidade e na justiça social. É nesse sentido que este artigo busca contribuir: ao iluminar os fundamentos históricos e teóricos da exclusão, abre-se caminho para imaginar alternativas inclusivas, sustentáveis e profundamente democráticas.


Bibliografia

Acemoglu, D., & Robinson, J. A. (2012). Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty. New York: Crown Publishers.

Marx, K. (1996). O Capital: Crítica da Economia Política – Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Nova Cultural. (Obra original publicada em 1867)

Rousseau, J.-J. (2004). Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Lisboa: Edições 70. (Obra original publicada em 1755)



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