O Impacto da Desinformação no Digital e a Estabilidade Política de Moçambique
Por Curtis Chincuinha
Resumo
O presente artigo analisa criticamente o impacto da desinformação digital na estabilidade política de Moçambique, com foco nos acontecimentos ocorridos antes, durante e após as eleições autárquicas de 2023. Através de uma abordagem teórica e contextual, o estudo explora a forma como o ecossistema digital tem sido manipulado para moldar percepções, alimentar a polarização e enfraquecer a confiança institucional. A pesquisa apoia-se em literatura académica relevante, dados oficiais e relatórios de organizações nacionais e internacionais, demonstrando que a desinformação constitui uma ameaça emergente à coesão nacional e ao processo democrático moçambicano. Defende-se, por fim, a urgência de estratégias coordenadas que envolvam regulação equilibrada, literacia digital e reforço do jornalismo independente como pilares essenciais para conter os riscos da manipulação informacional.
1. Introdução
O presente artigo tem como tema “O Impacto da Desinformação Digital na Estabilidade Política de Moçambique”, propondo uma análise crítica sobre como o ambiente digital tem sido instrumentalizado para influenciar negativamente o debate público, distorcer narrativas e desestabilizar o sistema político moçambicano. Num contexto marcado por crescentes tensões eleitorais, desconfiança nas instituições e elevada vulnerabilidade social, a desinformação digital emerge como uma força disruptiva que pode comprometer a integridade democrática do país.
A pertinência do tema justifica-se pela crescente incidência de campanhas de manipulação informacional observadas em períodos eleitorais, nomeadamente nas eleições autárquicas de 2023. Conforme reportado pela Sala da Paz (2023), foram detectadas múltiplas tentativas de desinformação destinadas a desacreditar os resultados eleitorais e minar a confiança nos órgãos de gestão eleitoral. Esta realidade insere-se numa tendência global de "guerra informacional", onde actores políticos e não estatais utilizam plataformas digitais para controlar a percepção pública e enfraquecer os pilares da democracia representativa.
Neste contexto, o presente estudo pretende contribuir para o debate nacional sobre os efeitos da desinformação digital, fornecendo uma leitura fundamentada do fenómeno e propondo caminhos concretos para a sua mitigação no quadro do Estado de Direito Democrático moçambicano.
2. A Desinformação como Arma Política no Século XXI
Peter Pomerantsev (2019), na obra This Is Not Propaganda: Adventures in the War Against Reality, argumenta que a desinformação digital tornou-se uma ferramenta central nas estratégias de poder contemporâneas. Em vez de simplesmente esconder a verdade, os novos modelos de propaganda procuram inundar o espaço público com múltiplas versões da realidade, dificultando a distinção entre factos e falsidades. Esta abordagem, segundo o autor, não visa apenas convencer, mas sobretudo confundir e desmobilizar.
A instrumentalização da desinformação política apoia-se no uso intensivo das redes sociais, onde algoritmos de amplificação premiam conteúdos emocionais e polarizadores. A lógica das plataformas digitais — regida por interesses comerciais e baseada em métricas de engajamento — facilita a viralização de conteúdos enganosos (Marwick & Lewis, 2017). A natureza fragmentada da comunicação digital moderna permite que diferentes grupos vivam em "realidades paralelas", cada um exposto apenas a conteúdos que confirmam as suas crenças pré-existentes (Lewandowsky et al., 2020).
Em contextos frágeis como o moçambicano, onde o tecido social é historicamente marcado por desigualdades, conflitos de memória e disputas étnico-partidárias, a desinformação tem um efeito especialmente nocivo. Em particular, a instrumentalização da informação para fins de desestabilização eleitoral foi amplamente documentada no ciclo de 2023 (CIP, 2023). Tais dinâmicas, além de erodirem a confiança pública nas instituições, podem reactivar tensões latentes e aprofundar a fragmentação social.
3. Ecossistema Digital e Vulnerabilidades em Moçambique
A penetração da internet em Moçambique cresceu significativamente na última década, impulsionada pela popularização de smartphones e pelo alargamento das redes móveis. Segundo dados do INCM (2023), cerca de 7,5 milhões de moçambicanos têm acesso regular à internet, representando mais de 23% da população. Este avanço, embora positivo do ponto de vista da inclusão digital, também introduziu novos desafios relacionados à governação da informação.
As redes sociais — especialmente o WhatsApp, Facebook e TikTok — tornaram-se os principais meios de circulação de notícias, frequentemente em detrimento dos canais jornalísticos convencionais. Esta desintermediação da comunicação dificulta a verificação de factos e aumenta o risco de disseminação de conteúdos falsos, especialmente em momentos de tensão política. O MISA Moçambique (2023) documenta casos recorrentes de boatos, vídeos manipulados e notícias falsas partilhadas em massa antes e depois das eleições autárquicas.
A ausência de uma legislação robusta para regular a desinformação agrava o problema. Embora exista a Lei do Cibercrime (Lei n.º 3/2017), esta não contempla de forma clara e eficaz o fenómeno da desinformação política nem estabelece mecanismos de responsabilização para plataformas tecnológicas e produtores de conteúdo malicioso. A regulação deficiente, combinada com baixos níveis de literacia digital, cria um ambiente ideal para a proliferação de manipulações informacionais com impacto real na percepção pública e na estabilidade social.
4. Dinâmicas de Desinformação no Processo Eleitoral de 2023
As eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023 ilustram de forma paradigmática o uso estratégico da desinformação no contexto político moçambicano. Diversos relatórios independentes — incluindo da Sala da Paz (2023) e do CIP (2023) — apontam para a circulação massiva de conteúdos enganosos com o objectivo de desacreditar o processo eleitoral. Entre os casos mais citados, incluem-se falsas declarações de vitória, vídeos editados de confrontos entre membros de partidos e informações erradas sobre locais de votação.
Durante o período pós-eleitoral, a desinformação intensificou-se, focando-se sobretudo em narrativas de fraude, repressão policial e suposta parcialidade dos tribunais. Muitas destas mensagens foram disseminadas através de redes encriptadas como o WhatsApp, dificultando a sua rastreabilidade e expondo a fragilidade dos mecanismos de verificação. A falta de respostas institucionais céleres e transparentes contribuiu para o agravamento da percepção pública de ilegitimidade, alimentando protestos e episódios de violência localizados em cidades como Maputo, Nampula e Quelimane.
Estas dinâmicas comprovam que a desinformação não é apenas um problema de comunicação, mas uma questão de segurança nacional. A manipulação coordenada da informação eleitoral pode comprometer a integridade do sufrágio, fomentar o descrédito das autoridades e abrir espaço para a radicalização política, num país ainda em processo de consolidação democrática.
5. Respostas Institucionais e Estratégias de Mitigação no Contexto Moçambicano
A resposta à desinformação digital em Moçambique deve ser pensada a partir de três eixos complementares: reforço da literacia digital, reforma legal e fortalecimento do jornalismo independente. No que respeita à educação digital, torna-se imperioso implementar programas de formação cívica nas escolas, universidades e comunidades, com enfoque na verificação de factos, análise crítica de fontes e combate à manipulação informacional. A UNESCO (2022) defende que a literacia mediática é o pilar essencial para a construção de sociedades resilientes a desinformação.
Do ponto de vista legal, é urgente actualizar o quadro normativo nacional, de forma a incorporar dispositivos específicos contra a circulação intencional de conteúdos falsos, sobretudo em períodos eleitorais. A criação de uma autoridade independente para a monitoria da veracidade da informação — com participação multissectorial — pode constituir uma ferramenta eficaz e democrática, desde que não seja usada para censura ou repressão.
Por fim, a promoção de um jornalismo livre, plural e profissional é essencial para restaurar a confiança do público nas fontes de informação. O declínio da sustentabilidade dos media tradicionais e o aumento da interferência política na linha editorial são factores que fragilizam o papel da imprensa como guardiã da verdade factual. É necessário garantir financiamento independente, protecção aos jornalistas e políticas de promoção da transparência mediática como elementos centrais na luta contra a desinformação.
6. Considerações Finais
O impacto da desinformação digital sobre a estabilidade política de Moçambique é uma realidade cada vez mais preocupante e documentada. Os acontecimentos eleitorais de 2023 confirmam que o ambiente informacional moçambicano se encontra sob pressão, sendo frequentemente explorado para fins de manipulação, intimidação e erosão democrática. A proliferação de narrativas falsas não só fragiliza a confiança institucional, como potencia o risco de violência política e desagregação social.
Neste cenário, o Estado e a sociedade civil precisam de actuar com urgência e responsabilidade. A construção de uma cultura informacional assente na ética, na transparência e na cidadania crítica constitui um desafio estratégico para a manutenção da paz social e da coesão nacional. A verdade, em tempos digitais, tornou-se um campo de batalha — e a sua defesa deve ser compreendida como uma tarefa colectiva em prol do futuro democrático de Moçambique.
Referências Bibliográficas
CIP – Centro de Integridade Pública. (2023). Boletim sobre o Processo Eleitoral Autárquico 2023. Maputo: CIP.
INCM – Instituto Nacional das Comunicações de Moçambique. (2023). Relatório Estatístico Anual das TIC em Moçambique.
Lewandowsky, S., Ecker, U.K.H., & Cook, J. (2020). Misinformation and Its Correction: Cognitive Mechanisms and Recommendations for Mass Communication. Psychological Science in the Public Interest.
Marwick, A., & Lewis, R. (2017). Media Manipulation and Disinformation Online. Data & Society Research Institute.
MISA Moçambique. (2023). Estado da Liberdade de Imprensa em Moçambique. Maputo.
Pomerantsev, P. (2019). This Is Not Propaganda: Adventures in the War Against Reality. Faber & Faber.
Sala da Paz. (2023). Relatório de Observação das Eleições Autárquicas. Maputo: Observatório Eleitoral.
Tully, M., & Ekdale, B. (2021). Digital Politics and African Democracy. Routledge.
Udupa, S., Baú, V., & Sampedro, V. (2021). Digital Hate: The Global Conjuncture of Extreme Speech. Indiana University Press.
UNESCO. (2022). Global Media and Information Literacy Week Report. Paris.