Golpes de Estado e Narrativas de Crise: Uma Análise à Luz de Newton Bignotto e Curzio Malaparte
Por Curtis Chincuinha
O contexto político contemporâneo, tanto em Moçambique quanto em democracias consolidadas como os Estados Unidos e o Brasil, tem demonstrado um padrão recorrente de desrespeito às normas institucionais por parte de determinados actores políticos. A recusa em aceitar resultados eleitorais, aliada à construção de narrativas que minam a confiança nas instituições, revela uma tendência de confrontação às bases do Estado de direito e da democracia constitucional. A análise deste fenómeno à luz das reflexões de Newton Bignotto, em Golpe de Estado: História de uma ideia, e Curzio Malaparte, em Técnicas de Golpe de Estado, oferece uma compreensão crítica e académica sobre o assunto.
Bignotto argumenta que um golpe de Estado não se limita ao uso da força bruta, mas frequentemente se concretiza por meio de um conjunto articulado de estratégias simbólicas que visam mobilizar a opinião pública contra as instituições vigentes. Ele destaca que os golpes modernos, em particular, utilizam elementos discursivos e emocionais que ressoam nas massas, criando um ambiente de polarização e desconfiança generalizada. Neste sentido, o ato de questionar a legitimidade de processos eleitorais, proclamando resultados alternativos ou estabelecendo agendas paralelas, é emblemático de uma tentativa de ruptura institucional.
A história recente dos Estados Unidos, com os eventos que culminaram na invasão ao Capitólio em 6 de Janeiro de 2021, oferece um exemplo paradigmático. Nesse caso, o discurso de descrédito em relação ao sistema eleitoral tornou-se o principal mecanismo de mobilização. A construção de uma narrativa de fraude, embora não sustentada por evidências, foi suficiente para instigar ações de confronto directo às instituições. Essa estratégia ecoa o que Malaparte descreve em Técnicas de Golpe de Estado, quando argumenta que a eficácia de um golpe reside não apenas na força, mas também na habilidade de desestabilizar o ambiente político e psicológico, manipulando percepções e criando um caos organizado.
De forma semelhante, o Brasil testemunhou, em 8 de Janeiro de 2023, um ataque coordenado aos edifícios dos Três Poderes, num episódio que reforça a utilização de técnicas descritas por Malaparte. A ocupação de espaços simbólicos, como os palácios de governo, é um recurso estratégico para criar a ilusão de controlo e, simultaneamente, deslegitimar os governantes em exercício. O simbolismo, nesse contexto, torna-se uma ferramenta de poder.
Quando se olha para o contexto moçambicano, os paralelismos tornam-se evidentes. A contestação pública dos resultados eleitorais, associada à proclamação de um calendário alternativo para eleições, constitui um acto que desafia frontalmente a legalidade e as bases constitucionais. A Constituição da República de Moçambique consagra no artigo 135 que a proclamação de resultados pelo Conselho Constitucional é definitiva e vinculativa. Qualquer tentativa de subverter esta norma é, na prática, uma afronta ao ordenamento jurídico e uma ameaça ao Estado de direito.
Bignotto enfatiza que golpes de Estado são viabilizados por narrativas que procuram capturar a imaginação popular, alimentando sentimentos de injustiça ou exclusão. No caso em análise, as acções de determinados actores políticos parecem orientadas por uma estratégia que visa semear dúvidas sobre a legitimidade do processo eleitoral. Isso não só desestabiliza o sistema político, como também ameaça a coesão social, ao fomentar divisões profundas dentro da sociedade.
Por outro lado, Malaparte fornece uma lente técnica para compreender o desenrolar dessas acções. Ele observa que, na ausência de força bruta, os golpes dependem de uma articulação meticulosa de acções simbólicas e jurídicas que criam uma aparência de legitimidade. Assim, a convocação de eleições paralelas ou a proclamação de uma posse alternativa não são meras demonstrações de desobediência, mas sim tentativas estratégicas de construir um poder alternativo que desafia a autoridade estabelecida.
O perigo dessa dinâmica reside na fragilização das instituições democráticas, que se tornam vulneráveis à repetição de tais actos no futuro. A manutenção do Estado de direito em Moçambique exige não apenas a aplicação rigorosa da lei, mas também um esforço colectivo para restaurar a confiança nas instituições. Isso inclui uma abordagem firme contra desinformações e a promoção de uma educação cívica robusta, capaz de fortalecer a resiliência democrática.
Os casos estudados por Bignotto e Malaparte revelam que as democracias contemporâneas enfrentam desafios semelhantes, independentemente de sua história ou contexto socioeconómico. A construção de narrativas que justificam actos de insubordinação e a manipulação de processos legais para criar rupturas institucionais são fenómenos globais. No entanto, a história também demonstra que as instituições podem resistir e recuperar, desde que haja uma resposta clara, coerente e baseada nos princípios da legalidade e do respeito pela vontade popular.
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Referências
Bignotto, N. (2006). Golpe de Estado: História de uma ideia. São Paulo: Editora 34.
Malaparte, C. (1931). Técnicas de Golpe de Estado. Lisboa: Antígona.
Constituição da República de Moçambique. (2004). Maputo: República de Moçambique.