A Construção do Estado de Direito em Moçambique: A Participação Cidadã nos processos eleitorais e o Papel dos Media Digitais à Luz de "As Sociedades Abertas e os Seus Inimigos" de Karl Popper

Por Curtis Chincuinha 

A construção do Estado de Direito em Moçambique pode ser melhor compreendida através da perspectiva de Karl Popper, que na sua obra "As Sociedades Abertas e os Seus Inimigos" defende que uma sociedade aberta é aquela onde prevalece a liberdade de expressão, o questionamento das autoridades e a participação activa dos cidadãos. Segundo Popper, "o que caracteriza uma sociedade aberta é a capacidade de seus membros de questionarem e mudarem os seus governantes sem necessidade de revoluções sangrentas" (Popper, 1974). Nesse sentido, a participação eleitoral e o fortalecimento das instituições democráticas são essenciais para a construção de um Estado de Direito sólido e legítimo.

No contexto moçambicano, a consolidação de um Estado de Direito implica a realização de eleições livres, justas e transparentes, bem como a participação activa dos cidadãos nos processos eleitorais. A Constituição da República de Moçambique consagra o direito de voto como um dever cívico e político fundamental no artigo 73, e sublinha no artigo 135 a necessidade de realizar eleições periódicas que respeitem a transparência e a vontade popular. Contudo, a elevada taxa de abstenção eleitoral continua a ser uma preocupação, o que compromete a legitimidade do sistema democrático. Braconnier e Dormagen (2007) descrevem esse fenómeno como uma "democracia da abstenção", onde apenas uma minoria participa activamente nos processos eleitorais, enquanto a maioria dos cidadãos opta por não votar. Esta realidade foi evidente nas eleições gerais de 2004, quando a taxa de abstenção atingiu 64%, e mais recentemente nas presidenciais de 2019, com 51% de abstenção.

Além da apatia eleitoral, o fenómeno da abstenção pode ser visto como um sinal de desilusão com o sistema político em geral. Neste sentido, a análise de Byung-Chul Han sobre a crise de narrativa, apresentada em "A Sociedade da Transparência", fornece uma lente crítica para entender essa desilusão. Han argumenta que a narrativa tradicional, que era carregada de significado e de um senso de comunidade, foi substituída por uma comunicação transparente, mas vazia (Han, 2017). No cenário político moçambicano, isso se reflete em discursos políticos que, embora amplamente divulgados e acessíveis, carecem de profundidade e conexão genuína com as necessidades da população. As campanhas eleitorais transformam-se em uma sucessão de slogans e promessas genéricas, que pouco contribuem para a conscientização ou o engajamento do eleitor.

Os media digitais emergem como uma ferramenta potencial para aproximar os cidadãos do Estado, reforçando o papel da comunicação na promoção da transparência e da responsabilização. Chincuinha (2023), na sua reflexão sobre o uso dos media digitais na administração pública moçambicana, destaca que, com a implementação do Programa de Reforma do Sector Público e a adopção de novas tecnologias de informação e comunicação, as instituições públicas passaram a utilizar as plataformas digitais para melhorar a interacção com os cidadãos. Essas plataformas, em especial as redes sociais, oferecem flexibilidade, rapidez e acessibilidade para o diálogo entre o governo e os cidadãos. No entanto, como Chincuinha observa, apesar do crescente uso dos media digitais para comunicação institucional, o seu impacto na mobilização cívica e na participação eleitoral ainda é limitado.

A Web 2.0 e as redes sociais, com a sua capacidade de partilha de conteúdos e interacção em tempo real, proporcionam uma oportunidade única para os cidadãos exercerem o seu direito à informação e participação política. Contudo, a baixa literacia digital e a desigualdade no acesso a essas plataformas dificultam a maximização do seu potencial na promoção de uma maior participação eleitoral. Para Chincuinha (2023), o sucesso das plataformas digitais em promover a participação cidadã depende da capacidade das instituições públicas em utilizá-las de forma eficaz e estratégica, de modo a fomentar uma comunicação bidireccional que incentive o diálogo e o engajamento cívico.

Em conclusão, a teoria das sociedades abertas de Popper oferece um quadro teórico relevante para analisar os desafios que Moçambique enfrenta na construção de um Estado de Direito. A participação activa dos cidadãos nos processos eleitorais é essencial para garantir a legitimidade das instituições e promover uma democracia saudável. Os media digitais, como destaca Chincuinha, têm o potencial de contribuir para este objectivo, mas o seu impacto depende de um uso estratégico e inclusivo, que permita a todos os cidadãos o exercício pleno dos seus direitos democráticos. Para evitar que Moçambique se torne uma "democracia de abstenção", é necessário um esforço concertado entre o Estado e as instituições de media para revitalizar o envolvimento cívico e a confiança dos cidadãos no processo democrático. Como observa Han (2017), é crucial que as narrativas políticas se tornem mais autênticas e significativas, em vez de permanecerem na superficialidade da sociedade da transparência.

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Referências

Braconnier, C., & Dormagen, J. Y. (2007). "La démocratie de l’abstention". Paris: Folio Gallimard.

Chincuinha, C. (2023). "O uso dos media digitais na administração pública moçambicana: o caso da FanPage do Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino". Maputo.

Han, B.-C. (2017). "A sociedade da transparência". Lisboa: Edições 70.

Popper, K. (1974). "The Open Society and Its Enemies". London: Routledge.

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