Zygmunt Bauman e as Memórias de um Sonho Colectivo: Construção do Estado-Nação em Moçambique e a Modernidade Líquida

Por Curtis Chincuinha


Para início de conversa, Bauman (2000) define a modernidade líquida como uma condição em que "as formas sociais e institucionais não conseguem mais manter a sua forma por muito tempo, porque se decompõem e se reformam mais rapidamente do que o tempo necessário para moldá-las" (p. 2). Este conceito descreve um mundo em constante mudança, onde as incertezas e a fluidez caracterizam as relações sociais, económicas e políticas, impondo desafios significativos para a criação de projectos sólidos e duradouros, como o Estado-Nação. No contexto moçambicano, esses desafios tornam-se ainda mais complexos.


De acordo com Melo et al. (2022), a concepção de Estado-Nação, promovida pelo presidente Samora Machel, emergiu como o ponto culminante da unidade do povo moçambicano durante a II Conferência do Departamento da Educação e Cultura em 1973. Machel visualizava a formação de uma nação coesa e robusta, superando as divisões étnicas, linguísticas, religiosas e culturais exacerbadas pelo colonialismo e pelas práticas tradicionais locais. No entanto, o contexto contemporâneo de modernidade líquida, conforme descrito por Bauman, apresenta desafios consideráveis para a concretização deste ideal.


Na década de 1970, a construção da nação em Moçambique era concebida como um projecto de união e aceitação mútua entre os diversos segmentos da sociedade. A criação de uma cultura nacional que representasse a identidade moçambicana era uma necessidade premente. Durante a sua presidência, Samora Machel procurou implementar um processo de reconstrução baseado na ideia de um só povo e uma só nação, utilizando discursos e práticas culturais para promover a unidade nacional. No entanto, a modernidade líquida, com a sua fluidez e instabilidade, dificulta a manutenção de uma identidade nacional coesa.


Na era da modernidade líquida, os ideais de unidade e identidade nacional enfrentam a concorrência de identidades múltiplas e fragmentadas. A globalização e a tecnologia amplificam essas divisões, dificultando a promoção de um sentimento coeso de nacionalidade. Além disso, as estruturas tradicionais de poder e autoridade são constantemente questionadas, desafiando a capacidade do Estado de manter uma narrativa unificada. A imposição de valores ideológicos sobre os valores tradicionais, como tentativa de unificação, mostra-se insuficiente diante das novas realidades sociais e culturais.


O projecto de construção do Estado-Nação em Moçambique, iniciado sob a liderança de Samora Machel, encontra hoje mais obstáculos devido às relações fluidas e dinámicas em todos os níveis. Os valores tradicionais, embora aparentemente suprimidos, continuam vivos e são mantidos pelos actores sociais. Isso demonstra que o Estado-Nação não se constrói apenas por valores ideológicos, mas também por mitos de origem, crenças, símbolos tradicionais e tradições que influenciam os grupos sociais. Como afirma Hall (2006), "essa construção de sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras, discursos, sons, imagens, coisas, materialidade e por práticas, ritos e performances" (p. 43). Na modernidade líquida, a construção de um Estado-Nação exige uma abordagem que reconheça e integre essas complexidades culturais e sociais.


O sonho de Samora Machel para um Estado-Nação em Moçambique enfrenta desafios significativos na era da modernidade líquida. As relações fluidas e dinámicas exigem uma reavaliação das estratégias de unificação nacional, incorporando as realidades culturais e sociais contemporâneas. O sonho colectivo de um Moçambique unido continua relevante, mas a sua realização requer uma abordagem adaptativa e inclusiva, que reconheça a diversidade e a complexidade do contexto actual.


Ao refletirmos sobre o passado e enfrentarmos os desafios presentes, é possível imaginar um futuro onde a construção do Estado-Nação se adapta e prospera, mantendo viva a memória de um sonho colectivo de unidade e identidade nacional.


____________


Referências


Bauman, Z. (2000). Liquid modernity. Polity Press.


Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora.


Melo, J., Silva, M., & Pereira, L. (2022). Construção do Estado-Nação em Moçambique: Desafios e Perspectivas. Editora Académica.

Postagens mais visitadas deste blog

Soberania em Risco: Como as Big Techs Reescrevem as Regras do Poder em Moçambique

Do Tradicional ao Digital: O Desafio do Uso dos Media Digitais na Administração Pública Moçambicana

SADC, Regulação Digital e Ordem Pública: Moçambique no Limite do Laissez-Faire